A tríade de Simons aplicada à neolinguagem

Uma exploração teórica: poderia esse modelo de 2006 ser utilizado como base para gêneros gramaticais alternativos?

Atenção! Este texto é para interessades em detalhes sobre neolinguagem, tanto por querer refletir sobre a questão quanto para poder elaborar explicações sobre neolinguagem. Se você caiu de paraquedas aqui e sente falta de uma explicação mais mastigada sobre neolinguagem, sugiro:


Introdução

A página neoflexões do Orientando detalha praticamente todas as flexões possíveis dentro da língua (excluindo artigos e pronomes, que possuem suas próprias páginas). Ela fala brevemente de casos como aluna/aluno e menina/menino, mas também adentra o que pode acontecer na neolinguagem com flexões de palavras como algum/alguma, eleitor/eleitora, nova/novo, monge/monja, herói/heroína, sacerdote/sacerdotisa, avó/avô, madre/padre e várias outras.

É o produto de anos de outras páginas falando dessas flexões irregulares, como esta em Nonbinary Wiki e esta em Blogue Alternative. Também é provavelmente o primeiro recurso que, além de ser completo, lida com finais de palavra além de e, apresentando exemplos e considerações com finais de palavra como ã, é, el, i, oa, u e y.

Porém, antes de tudo isso - antes até da neolinguagem ser vista como um assunto não-binário na lusosfera - existia A língua e o sexo – Quarto II – A solução, texto de Thomas M. Simons, que, em 2006, ofereceu preocupações com como “neutralizar” gêneros gramaticais.

A proposta de Simons é relativamente complexa em relação às outras já usadas na época, como o uso de @/el@/@ e x/elx/x como linguagem genérica, os quais na maior parte das vezes eram aplicados de forma que quaisquer flexões eram trocadas por um único caractere. Porém, também é relevante apontar que sua preocupação estava muito mais alinhada com a proposta de combater a mascunormatividade da língua do que de propôr um gênero gramatical alternativo que pessoas fora do binário de gênero pudessem se sentir inclusas (embora obviamente quaisquer pessoas possam adotar quaisquer conjuntos de linguagem, mesmo os que fazem referências às linguagens normativas).

Não que eu culpe alguém por não saber sobre tal questão em 2006 - eu mesme estava usando o(a)/ele(a)/o(a) como linguagem genérica por volta de 2013, mesmo sabendo da existência de x/elx/x - mas é um contexto importante para as decisões tomadas na proposta. De fato, eu até fico feliz em ver propostas que tentam lidar com a língua portuguesa para além de um único elemento de flexão de gênero.

A proposta

O que Simons chama de “Português Com Inclusão de Gênero”, ou “PCIG”, resume-se em três “símbolos-abreviadores” (aspas colocadas por serem terminologias diretamente retiradas do texto, não por sarcasmo):

  • @, símbolo que seria utilizado para substituir as letras A ou O quando são elas que se alternam na gramática padrão (exemplos: alun@, bonit@). No texto em si, Simons propõe a inclusão textual de arrobas minúsculas e maiúsculas, dependendo do contexto que faria sentido para uma letra qualquer, embora o caractere usado seja apenas uma @ normal em um tamanho de fonte menor;
  • Æ, letra não presente em nosso alfabeto que seria utilizada para substituir as letras A ou E quando são elas que se alternam na gramática padrão (exemplos: autoræs, presidentæ);
  • /, símbolo usado em combinação com a letra A para solucionar a questão do morfema Ø alternado com a letra A, isto é, quando a concordância com o final de palavra o gera um espaço vazio dentro da gramática padrão (exemplos: pintor/a, um/a).

Atualmente, a maioria dos guias de neolinguagem (ou de “linguagem neutra”) mais simples tendem a focar no primeiro exemplo, e não é incomum ver pessoas sabendo lidar com trocar A ou O por E mas ainda usando palavras como autores ou um como se concordassem com o final de palavra e. Não quero minimizar os esforços de quem fez tais guias ou guias feitos para ser mais completos, mas a questão é que muitas pessoas com contato com a neolinguagem acabam tendo noções mais limitadas de suas aplicações em comparação com PCIG.

Em contraste, existe uma preocupação bem forte com não usar o pronome ele ou sua contração com a preposição de (dele) como concordantes por padrão com a flexão e, e há pessoas que também se preocupam com não criar polissemias com palavras como e (como substituição de a/o) e pele (como substituição de pela/pelo, que ironicamente também possuem múltiplos significados). Também vejo adaptações como amigue e médique serem mais comuns do que amige e médice. Isso mostra que, ainda que exista algum senso de que há mais particularidades importantes do que variações entre trocar uma letra A ou O por E entre usuáries de neolinguagem, nem sempre há o questionamento acerca de todas as outras formas de flexão.

A adaptação

Não acho que, a esta altura do campeonato, pronomes como elementos separados de flexões sejam negociáveis. Ile é um dos neopronomes mais comuns, e também há pessoas usando ael, éli, ila, ilo, ily, ulo e outros pronomes que não começam com el (eli, éli e êli possuem pronúncias diferentes, então não conto como palavras que só mudam a última letra em comparação com ela ou ele neste contexto).

A maioria das pessoas não são igualmente apegadas aos seus artigos. Dito isso, também não acho que eles entram nessa questão, já que a razão pela qual eles foram separados dos finais de palavra foi a insistência de tantes em não usar e também como artigo.

O que sobra é aplicar o trio aos finais de palavra:

  • @ pode representar a aplicação básica dos finais de palavra;
  • Æ pode representar como fazer a substituição entre as letras A e E, sendo que quem usa o final de palavra e tende a usar ie ou u, embora existam outras possibilidades também;
  • / pode representar a substituição entre morfema Ø e A, a qual é geralmente composta pelo final de palavra, mas também já vi pessoas usando outras variantes, como autorie (para autor/autora) e une (para um/uma) em concordância com o final de palavra e. Por isso, este elemento pode ser mais complicado de implementar, já que há pessoas que variam seu uso dentro desse mesmo tipo de flexão.

Eu não sei se é a melhor ideia chamar tais elementos de @, Æ e /, tanto por centralizarem flexões normativas quanto por símbolos poderem não ser facilmente entendidos como variáveis. (Não acho que o uso de símbolos por si só consista em um problema de acessibilidade, visto que há siglas, arrobas, hashtags e outros símbolos sendo usades por aí na internet sem serem inerentemente inacessíveis.) Mesmo assim, pode ser possível explicar um final de palavra como “e, ie, e”, “e, u, e” ou “e, ie, ie” dentro deste sistema, sendo todas variações do final de palavra e.

Obviamente, tais preferências serão pouco práticas de implementar como parte da própria linguagem pessoal em ambientes mais amplos. Em 2026, o modelo APF completará uma década, mas, mesmo assim, ainda encontro bastante ignorância e resistência acerca da ideia de cada pessoa poder definir a própria linguagem pessoal sem aceitar a/ela/a ou o/ele/o, ou de um modelo além de falar sobre “pronome elu” ou “pronomes neutros” ser necessário para uma representação mais coerente de cada tratamento.

Mesmo assim, tal modelo pode ser aplicado quando alguém vai ensinar sobre as possibilidades da neolinguagem, ou sobre os modos que prefere que outres se refiram a si, como no caso de páginas personalizadas explicando a própria linguagem pessoal ou na elaboração do próprio conjunto avançado. Inclusive, tal conjunto avançado propõe especificar ainda mais irregularidades do que a tríade.

Por não saber o quanto é viável abreviar este modelo, é possível especificá-lo junto ao modelo APF. Por exemplo:

Conjunto (APF): ê/elé/(*)
* Favor usar e no lugar de alternância entre a e o/nada, e é no lugar de alternância entre a e e na língua padrão (ex.: bonite, algume, mongé)

Conjunto (APF): e/ile/e, favor usar “ie” para substituir a/e em palavras como presidentie ou a/nada em palavras como autorie.

É bem difícil alguém precisar de uma alternativa própria (isto é, no contexto de linguagem aplicada somente a certa pessoa) ao elemento ao qual PCIG propõe a letra Æ, se considerarmos pronomes como elu, essu, estu e aquelu dependentes de um elemento separado. Usei presidéntie e móngie como exemplos, mas mesmo estas não são palavras comuns para se referir a pessoas específicas que devem ser tratadas por neolinguagem. Palavras mais comuns terminadas na letra E, como estudante, militante ou independente, não são tipicamente flexionadas.

O elemento que alterna entre morfema Ø e A na língua padrão é mais comum: autore, criadore, diretore, eleitore, nue, professore, trabalhadore, ume, vendedore, etc. Mas a questão de especificar este elemento é, como já mencionei, mais complicada: só me deparei ou com pessoas que simplesmente inserem seu final de palavra “padrão”/@, ou com pessoas que mantém o morfema Ø (sendo que nem sei o quanto disso seria preferência e o quanto seria a questão de não conseguir pensar em outra opção), ou com pessoas que variam o que colocam, como quem usa autorie ou une mas não umie ou autone.

Seria possível ter algum tipo de modelo para especificar terminações alternativas, como -ume/-ore/-ue (esta última servindo para nue e crue, e esta segunda servindo também para juiz/juíza já que a forma plural funciona da mesma forma que autor/autora). O problema seria, novamente, explicar e especificar.

(Aliás, como nue e crue, para se referir a pessoas específicas, podem ser palavras trocadas por pelade e inexperiente de modo geral, há uma chance menor ainda de tais palavras serem usadas para pessoas que pedem que variações específicas sejam usadas para elas.)

Conclusões

Pensar nos elementos isolados como @, Æ e / dentro da tríade proposta em PCIG pode ser útil para cobrir dúvidas comuns a respeito de aplicar neolinguagem, ainda que eles não consigam mais representar todas as variações neolinguísticas usadas cotidianamente.

Também pode ser possível aplicar tal separação entre flexões dentro de uma linguagem pessoal. Porém, não só é difícil espalhar modelos que contemplam diversidade neolinguística, como também muito do esforço em reinvindicar certas particularidades pode acabar não valendo a pena, já que existem flexões irregulares que raramente vão ser usadas para se referir a uma pessoa específica.