O Markdown e as Ciências Humanas

Imagine o leitor um mundo no qual a Internet faz parte da vida das pessoas e o recurso à rede é incontornável. Esse mundo é o nosso, certo? Mas então conviria lembrar de um dos (vários) argumentos de Jaron Lanier sobre as redes sociais1: os inúmeros suportes dados por essas redes poderiam dar a impressão de um uso ampliado da cognição humana e uma maior liberdade de agir; mas se é assim, o que dizer sobre o uso político das redes sociais tal como feito no Brexit e na eleição de Trump (dentre outros), impetratos pela Cambridge Analytica? É como dizer que as redes sociais, tão propiciadoras da liberdade, seriam responsáveis também e especialmente pela alienação e a emergência de novos regimes populistas. Não à toa, termos como “pós-verdade” e fake news passaram a fazer parte do cotidiano de qualquer pessoa.

Se é assim, seria possível dizer que as redes sociais não apenas “ampliam” as ações humanas, mas de alguma forma também as condicionam. Eis o ponto de Lanier: nas redes sociais, não somos propriamente clientes ou usuários, pois por vezes a maior parte dos serviços não é paga. Mas se não é paga, quem então paga, e quem é o cliente? Entramos num tema bastante difundido: se não pagamos, é porque nós é que somos o produto.

“Somos o produto”

Mas há mais: não se trata apenas de ser “usado”. Lanier diz que o uso das redes sociais, especialmente nas novas gerações, condiciona hábitos de pensar, mobiliza emoções, posturas corporais, noções de orientação e esquemas de pensamento. Por assim dizer, estamos vendo emergir um novo tipo de “pessoa”, ancorada desde criança em aparatos tecnológicos que possuem dono e cujos modos de usar - e hábitos a adquirir - são previamente prescritos.

Esse argumento já é antigo e perpassou autores como Pierre Levy, dentre vários outros. Mas ainda não enfrentamos todas as suas consequências, especialmente após os eventos da Cambridge Analytica2. No momento em que escrevo isso, um novo aplicativo (o FaceApp) oferece fotos simpáticas enquanto prevê a captura de dados privados para usos não esclarecidos, em pleno ano de 2020 e próximo da reeleição de Trump. Se o argumento é perigoso, basta lembrar que o simples uso dos aplicativos de rede social permitiram que a Cambridge Analytica vendesse um produto bastante consistente para seus clientes3, baseado nos hábitos de mais de 7 milhões de pessoas. Para certas previsões estatísticas, é uma população e tanto.

O argumento de Lanier, de que as redes tornam as pessoas mais objetos do que sujeitos, inverteu uma das maiores promessas da internet. Há 15 anos, acreditava-se que a internet poderia fornecer liberdade às pessoas. É aí que entram outras gerações e relações com a web, e de onde desponta o nome de Aaron Swartz.

Markdown

Swartz criou, junto com a linguagem Markdown, uma série de outras coisas que marcaram a internet, como a linguagem RSS, os direitos Creative Commons e sites como o Reddit. Se hoje sites como a Biblioteca Genesys e o Sci-Hub estão ativos e pregam liberdade de pensamento, Swartz foi pioneiro desses movimentos quando baixou o banco de dados JSTOR, que cobrava o acesso de milhões de artigos acadêmicos. Esse episódio acabou envolvendo Swartz num esquema de assédio e criminalização que levaram à sua morte, ainda em 2013. A internet perdeu um de seus maiores gênios (vale conhecer sua história, por exemplo nesse livro ou nesse documentário), mas que deixou diversos legados.

Um desses legados é a linguagem Markdown. Ela é uma simplificação de outras linguagens, cujos princípios podem ser vistos aqui e aqui. Em resumo: é um código que abrevia formatações e permite maior fluidez do texto.

Mas o Markdown oferece diversos benefícios adicionais. Há inúmeros programas livres (como o Ghostwriter e o MacDown, para todas as plataformas - vale ver também essa lista), que dispensam programas mais pesados - e caros como o Office. Esses programas permitem compilar os dados desde para arquivos do Office (.docx, .odt etc.) quanto para arquivos .pdf, Latex ou feitura de páginas de internet (esta página é feita com emprego de Markdown).

Para dizer num lance: o domínio de linguagens como o Markdown torna o usuário mais autônomo e menos “objeto” de outros serviços, tornando possível outras formas de explorar os recursos oferecidos pela internet.

Linguagens como o Markdown oferecem, ainda, mais um ganho para o pesquisador de humanas. Durante os últimos anos, os diretórios acadêmicos começaram a prezar os links estáticos, tais como as identidades ORCID e DOI. O Markdown permite a criação de documentos estáticos e consistentes, um pouco semelhante ao padrão já oferecido pelo Latex. E vale acrescentar a diferença: acostumado aos esquemas visuais dos editores de texto como o Word, o pesquisador de Humanas talvez não se habitue a escrever no Latex pela ausência de maiores padrões de assinalação de sintaxe, por exemplo em códigos bastante utilizados como os itálicos, negritos e notas de rodapé. Quanto ao Markdown, diversos programas - como os assinalados acima - já oferecem tais opções.

Outra vantagem é a possibilidade de que um único documento possa ser exportado para muitos formatos diferentes. O que falta em portabilidade em outras plataformas, no Markdown sobra. Há, certamente, uma curva de aprendizagem e algumas dificuldades (como fazer tabelas), mas a linguagem e os recursos valem o teste.

Afinal, se o recurso permite um espaço a mais de liberdade, então é válido.

Notas

1

(1) LANIER, J. Dez Argumentos para você deletar agora suas Redes Sociais. RJ: Intrinseca, 2018.

2

(2) CADWALLDR, Carole. ‘I made Steve Bannon’s psychological warfare tool’: meet the data war whistleblower. The Guardian, 18/3/2018 https://www.theguardian.com/news/2018/mar/17/data-war-whistleblower-christopher-wylie-faceook-nix-bannon-trump

3

(3) KAISER, Brittany. Manipulados – como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque. RJ: Harper Collins, 2020.